PRÉ- REQUISITOS PARA O DESENVOLVIMENTO DA LEITURA E DA ESCRITA

( E DA LINGUAGEM)

1)- DEFINIÇÃO DO ESPAÇO INTERNO

A definição e a estruturação desse editor espaço interno, palco de toda atividade abstrata, só é possível através dos movimentos com que se explora o espaço externo desde o nascimento. Depois do período de movimentação reflexa apresentada pelo recém nascido, à custa da maturação do sistema nervoso, passa a existir a manutenção do tônus muscular, que possibilita o surgimento da postura corporal, que permite a realização de movimentos voluntários, concomitante à formação do esquema corporal.Inicialmente atabalhoados , os movimentos sem muita direção, com força e medida de distância mal definidas, vão ficando cada vez mais calibrados, mais ordenados, ajustando-se a relação espaço/ movimento/tempo. Exemplo: um garoto numa brincadeira com bola – chuta depois que a bola passou, depois acerta a bola, mas erra a direção, depois chuta a bola, acerta a direção e a distância. Desse modo, através dessa interação espaço exterior/movimento começa a ser definido esse espaço interno virtual onde é alocado tudo que se enxerga, se escuta, se apalpa, se cheira, se sente o gosto. Esse processo conta com a participação de várias estruturas, localizadas em muitas áreas do encéfalo, com atribuições diferentes, que funcionalmente se agrupam, se organizam e se entrelaçam de inúmeras maneiras para que seja definido o significado (conceito) de cada estímulo que chega. É um processo extremamente complicado, porque também envolve retenção ( memória de diferentes tipos e natureza), das informações que chegam, inclusive as motoras, o que só é possível se estiver atuando um tempo de atenção suficiente que permita a percepção do estímulo externo que ocorreu, muitas vezes registrado sem que se tenha consciência. A repetição dos estímulos externos, nesse contexto de muita movimentação corporal, vai permitido a estruturação cada vez mais refinada desse espaço interno virtual , associada à violenta expansão de novos conceitos, que vão sendo “vestidos” pelas palavras e que se traduzem no aumento do vocabulário. Isso leva à condição cada vez mais apurada, limitada pelo potencial da criança, de exercitar o juízo de valor, que se manifesta na definição (escolha) das pessoas, objetos, animais, do que ” julga importante”, e que permeia toda interação, ao lado da programação motora cada vez mais refinada e precisa. Assim, quanto melhores forem as condições de motricidade e do ambiente que permitam a atividade física da criança, para que através do movimento domine e incorpore o espaço que a cerca, melhor o resultado de dois importantes lastros para a aquisição e desenvolvimento da linguagem. O primeiro é representado pela estruturação do espaço interno (onde acontecem as relações temporais), com mais facilidade e de melhor qualidade. O segundo lastro, intrinsicamente atrelado ao anterior, é representado pelo menor gasto de energia para o necessário enquadramento do espaço externo onde se vai atuar e onde acontecem todas as ações, que são programadas no espaço interno. Sem esse constante enquadramento do espaço externo, calibrado pela definição espacial abstrata, nosso “território de referência” , fica muito difícil, senão impossível, a realização eficiente de qualquer atividade. Normalmente se entra em pânico quando se perde essa referência. Quem já não o vivenciou quando se confunde o local onde estacionou o carro. Ou até por motivos aparentemente banais: ficamos incomodados quando somos obrigados a assistir televisão numa poltrona diferente da nossa e experimentamos uma sensação de conforto quando a ela retornamos; parece que a imagem fica mais nítida e o que o som fica mais audível. Pela mesma razão, no cinema, na igreja, na sala de aulas, no restaurante, à mesa, na cama, preferimos e sempre tendemos a ficar nos mesmos lugares. Na realidade, isso significa menos gasto de energia nesse processo contínuo e necessário de incorporação e manutenção do enquadramento do espaço externo, realizada de maneira inconsciente e harmonizada pela qualidade do espaço interno abstrato. Com o decorrer dos anos vai se perdendo a condição de realizar essa operação com eficiência. O excesso de energia que passa a ser exigido nessa atividade manifesta-se, a nível consciente, como um tipo estranho de desconforto, que leva, por exemplo, a pessoa idosa a não “gostar “de sair de casa. Isso porque incomoda, angustia, inquieta a sensação de não se chegar ao conforto da incorporação e enquadramento imediato do espaço no qual é preciso atuar. Na velhice torna-se mais difícil de ser instantaneamente conseguido . Esses exemplos foram dados para ilustrar que inconscientemente gasta-se energia para a incorporação e enquadramento do espaço em que se atua, e que a energia que tem que ser alocada para essa atividade é roubada daquela que deveria ficar disponível para a interação com o ambiente. As situações mencionadas nesses exemplos envolvem pessoas que de forma normal estruturaram o espaço interno no seu desenvolvimento e, portanto, em condições de regerem as relações cronológicas e o enquadramento do espaço externo. No caso do idoso, há a perda de habilidade e eficiência nessa atividade, o que leva ao consumo de muita energia, que as vezes interfere de maneira significativa na qualidade da sua interação e, mesmo, no seu comportamento. Nos outros exemplos, fica registrado o maior desgaste para a reformulação do referencial interno (abstrato), para um novo enquadramento do espaço externo, para quem já o tinha estruturado em atividades rotineiras.

2)- FALA

Simultâneo a todo esse processo, atrelado à definição do espaço interno, está ocorrendo a maturação das estruturas que permitem a articulação dos sons da fala, veículo fundamental para exteriorização da linguagem. Esse complicado processo depende da atuação conjunta do sistema auditivo e de estruturas inicialmente programadas para sugar, mastigar e deglutir do sistema digestório, e das vias aéreas, para a emissão da voz. Depois de um ano (em média) de maturação dessas estruturas, e de intensa atividade conjunta, em que, por aproximação sucessiva, o sistema auditivo vai monitorando os sons que são emitidos, num complicadíssimo jogo funcional – são muitos os sistemas anátomo-funcionais envolvidos- ocorre a fixação no sistema nervoso central dos padrões de movimentos necessários para a produção automática de cada som (engramação acústica – articulatória), que obedece a uma seqüência fisiológica de aparecimento.

3)- ATENÇÃO ARBITRÁRIA

O surgimento da fala desempenha papel importante no desenvolvimento da atenção arbitrária, apanágio da nossa espécie. É assim chamada porque independe do apelo fisiológico e da intensidade do estímulo externo, uma vez que está a serviço do interesse, da necessidade, do juízo de valor e da oportunidade, de cada momento. A atenção arbitrária, que é indispensável para a aquisição e desenvolvimento da linguagem, resulta do comando que é dado pelo adulto significativo, através de ordens repetidas várias vezes, quase sempre “contrariando” o interesse ( atenção) da criança voltado para estímulos mais intensos e atraentes. Com o tempo, em que ocorre a expansão do espaço interno, uma certa organização temporal, o aumento de conceitos e do vocabulário, a agilização da articulação dos sons (fala), esse arbitramento do tempo de atenção vai sendo incorporado pela criança e passa a desempenhar papel importante na definição de juízo de valor, que calibra a escolha e a preferência pelos objetos, pelas pessoas, e mais tarde, na definição daquilo que se faz necessário , importante, oportuno e adequado, para cada faixa etária.

4)- ORGANIZAÇÃO DO ESPAÇO INTERNO E CAPACIDADE DE ABSTRAÇÃO

A qualidade da exteriorização da linguagem, em todas as suas manifestações possíveis, só atinge excelência depois que o espaço interno em expansão, que possibilita a estruturação do conceito de tempo, passa por importantes mudanças na organização que rege o seu funcionamento, balizadas pelo potencial da criança. Ao nascimento e primeiros meses de vida, as informações que chegam do ambiente são muito pobres como conseqüência da imaturidade das estruturas a serviço dos cinco sentidos e da propriocepção. A criança pequena não faz distinção entre o espaço ocupado por seu corpo e aquele que lhe é externo, pois, para ela, tudo está ligado nela. Por não reconhecer o limite ou a fronteira de seu corpo, acaba formando um conjunto aberto com o espaço ao seu redor. Só aos poucos vai diferenciando seu corpo dos demais seres, tais como, pessoas, animais, plantas, objetos. Sua configuração cognitiva é mágico-fenomenológica e leva a criança a “crer ” que tudo está centrado nela. Nessas condições, ela se torna a “responsável” e a “causa” de todos os eventos, sendo a soberana de tudo e de todos. Essa maneira de ser caracteriza uma vivência topológica (geometria que estuda os conjuntos) do mundo, ou seja, a criança faz parte de toda e qualquer relação que se estabelece entre objetos ou em outras palavras, a criança não consegue relacionar dois ou mais objetos entre si excluindo-se da relação (do conjunto). Nas relações topológicas entre os objetos, a criança nunca é observadora uma vez que ela sempre participa da relação. Essa configuração topológica confere à criança uma vivência egocêntrica do mundo. Mesmo que nessa etapa exista a possibilidade de fazer distinção dos objetos e das pessoas, o que prevalece na atuação da criança é o critério “da coisa” pertencer a um ou a outro conjunto (nela ou fora dela). Dessa forma, na interação com o ambiente, o arranjo do que manipula tende a estar “anarquicamente organizado”. Exemplo: se para uma criança de 4 anos for apresentada a figura de uma face em que se pede para desenhar o olho que falta, e ela colocá-lo em qualquer lugar da folha de papel, está topologicamente correto porque está fora dela, portanto em outro conjunto. O impressionismo é uma manifestação artística dessa natureza.
Com a aquisição e aprimoramento de todas as capacitações que acontecem a partir da definição do espaço interno e do eixo de referência espacial abstrato, o mapa cognitivo vai assumindo características que possibilitam definições cada vez apuradas das coisas e o estabelecimento de relações mais precisas entre elas (causa/efeito). Isso porque leva em conta a forma , o tamanho e as características do que a cerca , de acordo com o que permite os limites do espaço tridimensional e finito, onde ocorrem os movimentos ( geometria euclidiana), que adequadamente passa a ser enquadrado pela criança -(comunicação pessoal feita pelo Dr. Paulo Bearzoti, l8/9/2003).
O mapa cognitivo deixa de apresentar as características topológicas (de conjunto) e passa a funcionar de acordo com os pressupostos da geometria euclidiana. É a partir desse momento, de definições mais precisas e da melhor capacidade de estabelecer relações espaço/temporais, que fica possível o grande avanço na capacidade de abstração. Isso dá condição para a criança adquirir e trabalhar com desenvoltura os conceitos e os vocábulos que expressam a noção de tempo ( ontem, depois de amanhã, daqui a dez dias, dias da semana , as horas, os meses, etc.). Também, os que expressam noção de quantidade, noção de perigo (causa/efeito), a definição e o entendimento das regras de um jogo, adaptá-las para diferentes situações e definir as sanções para os seus infratores, bem como formular estratégias mais elaboradas para atingir os seus objetivos, que se tornam cada vez mais complexos e com mais qualidade.


Referências Bibliográficas/ Leituras Recomendadas:
Bearzoti, P.- Das Relações Topológicas e Euclidianas – trabalho em fase de publicação – email: bearzoti@bestway.com.br
Gesell, A., Amatruda,Y.C.(1962). Diagnostico del Desarrollo Normal y Anormal del Ninõ (2ed). Buenos Aires: Editorial Paidós.
Perdicaris, A. A. M.(1995). Comunicação Médica e Competência Interativa: Uma visão Semiótica; (Dissertação de Doutorado, PUC- S.P,1995).
Rodrigues, E. J. B. Síndrome: Enurese Noturna, Valgismo, Disfonia, Ortodontopatia. Rev. Br. Otorrinolaringologia 1977; 63 (3): 280-283.
Spitz, R. A.(1965). O Primeiro Ano de Vida (1ºed). São Paulo, SP: Martins Fontes.
Spitz, R.A. (1984). O Não e o Sim- a gênese da comunicação (2ªed).São Paulo,SP: Martins Fontes.


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