PROBLEMAS NA LEITURA E NA ESCRITA:
MUITAS VEZES, A PONTA DO ICEBERG

Evaldo José Bizachi Rodrigues

A aquisição e a automatização dos mecanismos de leitura e de escrita são processos extremamente complicados.

Na leitura, há a necessidade de se estabelecer a correspondência entre as letras e os sons que as representam, na mesma sequência em que estão colocados na palavra. A seguir, a palavra precisa ser identificada para que se chegue ao seu significado e, assim sucessivamente, até que se chegue à compreensão do texto como um todo.

Na escrita, ocorre o processo inverso. Cada som é transposto para cada letra (ou letras) correspondente, acrescida da programação e da execução dos movimentos necessários para que seja grafada na mesma sequência em que aparece nos vocábulos.

Na realidade, no ato de ler e de escrever acontece um processo de “mixagem”, em que estímulos visuais são transpostos para sons na leitura e, ao contrário, na escrita. Desse modo, o domínio da leitura e da escrita está na dependência de muitos pré-requisitos que se desenvolvem desde o nascimento.

     Conforme a criança cresce (amadurece), esses pré-requisitos vão gradativamente sendo aperfeiçoados até que atingem a condição ideal de funcionamento para o êxito dos processos de leitura e escrita.

     Dentre os pré-requisitos necessários para que o processo de alfabetização transcorra com sucesso, estão: a qualidade do tempo de atenção seletiva; o bom desempenho na articulação dos sons (fala); a adequada organização interior do espaço que permite o surgimento da noção de tempo, da capacidade de abstração e do desenvolvimento da lógica do pensamento (base da linguagem); e, finalmente, a maturação das estruturas envolvidas na “mixagem” já mencionada.

Caso ocorra falha no desenvolvimento de qualquer um desses pré-requisitos, haverá sério risco de fracasso no domínio da leitura e da escrita, mesmo em crianças inteligentes e com bom potencial. A leitura é truncada, sem ritmo, sem compreensão e, na escrita,  acontecem trocas, inversões e omissões de letras. A desatenção e a inquietude são sinais presentes nessa situação(TDAH).

Para melhor caracterizar essa situação de dificuldade e suas implicações, que são frequentes na prática clínica, vamos tomar como exemplo uma  criança com febre. Da mesma forma que a febre não é considerada um problema da pele e sim um sinal clínico que se manifesta na pele, provocado por diferentes causas, as trocas e/ou omissão de letras na escrita, a leitura de má qualidade e a desatenção em sala de aula não são problemas da leitura e da escrita, mas sim manifestações que acontecem na leitura e na escrita, pela falta de condição da criança em executá-las, por diferentes motivos.

Pela falta dessa informação, nas dificuldades escolares prevalece a luta contra o mau resultado. Apela-se para o uso de calmantes para diminuir a agitação da criança ou de medicamentos para torná-la atenta; ainda, a adoção de medidas como a realização de cópias, ditados e exercícios de leitura, com o intuito de resolver essas falhas, mas sem que as causas sejam atacadas. Por essa razão, os resultados costumam ser desalentadores. São procedimentos com esse viés que levam as crianças a desenvolver resistência e fobia em relação às atividades de leitura e escrita. Levam também ao processo de consolidação das suas falhas, que acabam se tornando crônicas. Daí, chega-se ao rótulo de disléxicas. Da mesma maneira que acontece com qualquer sinal-sintoma clínico (febre, cólica etc.), na leitura e na escrita também ocorrem oscilações, com altos e baixos O eventual e raro desempenho um pouco melhor leva os pais e professores à falsa impressão de que, “quando querem”, as crianças fazem direito. Por conseguinte, induzem à errônea avaliação de falta de empenho, de safadeza ou de irresponsabilidade.

Nesse contexto, usando muita coação, podem ser obtidas as notas que compõem um boletim suficiente para que sejam empurradas para as séries seguintes. A família assume as lições e passa a tomar conta da agenda escolar. Entra em agonia às vésperas das provas e fica ansiosa à espera dos resultados. Não raramente, a escola é pressionada pelos pais para novas oportunidades de notas.

Da parte das crianças, vem sempre a honestíssima resposta “Não sei”, quando indagadas de como se saíram numa prova. Mesmo que tenham conseguido nota razoável, o conteúdo que a motivou estará esquecido no dia seguinte ao da prova, como se, para adquirirem um conhecimento novo, o antigo tivesse que sair para lhe dar lugar.

Aos poucos, cria-se um clima muito sofrido e triste para as crianças que passam a funcionar como office-boys de má qualidade, ao trazerem dados incompletos da escola para casa e a levarem, de casa para a escola, tarefas malfeitas, com frequência “tercerizadas” aos pais que, pela mão das crianças, a duras penas, realizam os deveres de casa, quase sempre num clima de verdadeira guerra.

As notas aceitáveis, que dessa maneira passam a constar do boletim, criam a falsa ilusão de que os filhos/alunos estão caminhando e alimentam a vã esperança de que, com o tempo, as dificuldades serão superadas. Não se percebe que essas crianças estão sendo empurradas para situações cada vez mais complicadas, com os conteúdos mais complexos das séries seguintes, que elas não têm condições de dominar.

A rebeldia, as atitudes agressivas das crianças e a maneira um tanto “cínica” de funcionarem passam a ser frequentes quando o assunto é escola. Não é rara a providência de esconderem uma prova com nota baixa ou a tentativa de imitarem a assinatura dos pais numa advertência vinda da escola, com menção do mau rendimento. A apatia e os sinais de baixa autoestima começam a permear sua interação, com tendência ao isolamento e às manifestações de fuga.

E, dessa maneira, repito, crianças inteligentes e com bom potencial, que no decorrer do seu desenvolvimento apresentaram falhas nos pré-requisitos indispensáveis para a aquisição e a automatização dos mecanismos de leitura e escrita, que não foram valorizadas ou foram mal resolvidas, vão sendo empurradas para o sofrido caminho do insucesso escolar. Há então o desespero da família e o significativo comprometimento da autoimagem de crianças/adolescentes, num mundo cada vez mais competitivo e hostil.

No entanto, se essas falhas forem precocemente identificadas, evita-se que  crianças entrem por esse  sofrido caminho, pela oportunidade de diagnóstico e tratamento adequados, inclusive com os recursos atuais de que dispõe a medicina foniátrica. Sua ação torna mais rápidas e eficientes as necessárias intervenções da fonoterapia, das terapias ocupacional, psicopedagógica e  psicológica, de forma particular ou associadas.

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*Foniatria: Especialidade médica que diagnostica e trata distúrbios da maturação, da aprendizagem (inclusive fala, linguagem, leitura e escrita) e do desenvolvimento (organização e adaptação).


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Dr. Evaldo J. B. Rodrigues. CRM - SP- 12114. Todos os direitos reservados.